Michael Jackson e o fim de uma era

Michael Jackson e o fim de uma era

MARCIA TOSTA DIAS

O auge e o descenso de sua carreira coincidem com o apogeu e o declínio de um específico modelo de negócios da música

AS EXÉQUIAS feitas na forma de um show visto por milhões de pessoas no mundo todo dão ao grande espetáculo seu último suspiro. Além de fazer pensar sobre os rumos da música e da cultura na atualidade, a morte de Michael Jackson oferece preciosa oportunidade de reflexão sobre o mundo da música gravada, que está em profunda transformação.
A trajetória do artista, que ostentou os maiores índices conhecidos de vendas de discos, estabeleceu fina sintonia com a forma clássica de atuação das grandes gravadoras. Tanto o auge como o descenso de sua carreira coincidem, em larga medida, com o apogeu e o declínio de um específico modelo de negócios da música. Da perspectiva do "business", desde cedo, Michael Jackson surgiu como um artista completo -a matéria-prima fundamental: intérprete ímpar, exímio dançarino e compositor, com presença de palco, carisma, dedicação e diálogo com diferentes tradições culturais americanas, dos padrões hollywoodianos à essência da cultura negra local.
Se com o Jackson Five, seu grupo de origem, traduzia o espírito da gravadora Motown, à qual se integrou em 1968, foi na CBS que sua carreira solo se expandiu, via selo Epic -por mais que tenha feito discos solo de grande sucesso também na Motown. Vale lembrar que data do final dos anos 60 a intensificação dos processos de fusão de grandes empresas da área do entretenimento, fazendo surgir as "majors" da música (EMI-Odeon, PolyGram-Universal, RCA-BMG, CBS-Sony e Warner), que concentrariam a atividade dessa área de negócios não somente nessa época mas por todo o século 20.
Fez parte desse processo a incorporação, pelas grandes, de pequenos selos ou de nomes por eles revelados. A transferência dos Jacksons para a CBS se deu em 1975, e o primeiro álbum solo de Michael nessa companhia veio em 1979, "Off the Wall", já como resultado de parceria com o produtor musical Quincy Jones. Na atividade do produtor musical encontramos outra marca dos discos feitos pelas grandes gravadoras. O conhecimento específico das várias áreas envolvidas o posicionava estrategicamente na fronteira entre arte e economia, entre música e "business". Quincy Jones traduzia de maneira exemplar tais atributos.
Por suas mãos, Jackson teve acesso aos mais requintados recursos técnicos e musicais disponíveis, bem como ao exercício de uma criação artística que se expandia para além dos padrões estéticos da indústria cultural. É o caso dos videoclipes, que, depois dele, transcenderam o perfil original de produto promocional do disco/artista. Nessa vereda é que são realizados os álbuns "Thriller" (1982) e "Bad" (1987), as maiores cifras de vendas já alcançadas na história.
No estatuto de ídolo, de referência musical da cultura pop, Jackson conseguiu ainda o feito de conjugar duas estratégias distintas das "majors": um "cast" de artistas que vendem discos em quantidade regular, mas por muito tempo (a mais lucrativa -os "artistas de catálogo"), e outro com discos que vendem muito, mas por pouco tempo ("os artistas de sucesso").
Ao ter permanecido por dois anos (1983 e 1984) liderando a lista de discos mais vendidos, "Thriller" sintetiza essa conjunção, e Jackson passou a simbolizar o modelo ideal de artista a receber a atenção de grandes gravadoras, mesmo que fosse em menores proporções. O disco subsequente, "Dangerous" (1991), além de não ter repetido o sucesso dos anteriores, não contou com o trabalho de Quincy Jones. Jackson passou a se dedicar de maneira desigual à sua carreira profissional, perdendo progressivamente o vigor.
No início dos anos 90, a indústria fonográfica se dedicava à inserção do CD no mercado e à transposição de parte de seu catálogo para o novo suporte. Essa estratégia trouxe o último grande impulso de acumulação, na medida em que tais reedições foram feitas com custo de produção musical amortizado, gerando para venda um produto mais caro que o disco de vinil. O mercado mundial passou de US$ 12 bilhões de faturamento em 1985 para US$ 40 bilhões em 1995.
Mas a alegria durou pouco. A fluidez da tecnologia digital fez com que a difusão dos produtos escapasse ao controle das gravadoras. Os procedimentos considerados ilegais -primeiro de vendas e, mais tarde, de compartilhamento de músicas no formato digital- inverteram radicalmente a curva do lucro num espaço de tempo muito curto. Em 2000, as cifras mundiais de faturamento estavam em torno de US$ 37 bilhões. Em 2005, em US$ 33 bilhões.
Também sustentaram a queda a incapacidade de inovar artisticamente e de assimilar as transformações técnicas, em vez de lhes declarar guerra, bem como o descaso com o público, que, ao lado do artista, deveria compor a essência do sistema. Para retomar o ritmo do negócio, nem mesmo um novo Michael Jackson bastaria. O aumento nas vendas de seus discos após sua morte não altera o panorama. Antes, revela mais uma marca do "business". Desse grande cenário, permanecem as heranças artísticas, os desafios postos pelos direitos autorais, a música e os artistas, pois estes não morrem jamais.


MARCIA TOSTA DIAS
, 46, socióloga, doutora em ciência política pela USP, é professora da Unifesp (Universidade Federal de São Paulo) e autora de "Os Donos da Voz".

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